Separação de lastro e energia: impacto para o consumidor

Separação de lastro e energia: impacto para o consumidor

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A separação de lastro e energia está no centro das discussões sobre a abertura integral do mercado de energia elétrica no Brasil. Trata-se de uma mudança no mecanismo de contratação da geração, onde o lastro representa a confiabilidade e a segurança do sistema, enquanto a energia está mais relacionada ao consumo.  Atualmente esses dois produtos são contratados conjuntamente nos leilões promovidos pelo governo federal. 

Discutida desde julho de 2017, a separação de lastro e energia é considerada fundamental para que todos os consumidores possam escolher seu supridor de energia, inclusive os de baixa tensão (residenciais). As bases para sua implementação estão no Projeto de Lei 414/21, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados.  O detalhamento da separação está no Artigo 5º do PL, que modifica vários pontos da Lei 10.848/2004. 

Mais, afinal, o que a separação de lastro e energia tem a ver com a abertura de mercado? Neste artigo vamos explicar o contexto no qual se insere essa discussão e qual é o impacto para o consumidor livre. Continue a leitura.   

Desde 2004, quando o novo marco regulatório do setor elétrico foi implementado, a contratação de lastro e energia foi desenhada para ser feita de forma conjunta e centralizada, por meio de leilões promovidos pelo Governo, com custos suportados principalmente pelos consumidores do mercado cativo.    

Naquela época, o setor se recuperava do racionamento de 2001/2002 e, portanto, o governo precisava criar um modelo de leilão capaz de atrair o capital privado para garantir a expansão da oferta de energia.  

A regra de ouro do modelo é que distribuidoras devem garantir o atendimento de 100% de seus mercados de energia por intermédio de contratos de longuíssimo prazo (20-30 anos). Dessa forma, com base na declaração de demanda das concessionárias, o governo promove leilões para contratar nova capacidade de geração. 

Vale lembrar que naquele tempo o mercado livre presentava 12,1%, a matriz de geração era 90% hidrelétrica e não se enxergava outra tecnologia com custo competitivo além das termelétricas. Devido ao contexto tecnológico da época, havia a expectativa de que a energia a ser implementada seria sempre mais cara que a existente.   

Passados quase 20 anos, o modelo se mostrou efetivo para atrair investimentos privados para o aumento da capacidade instalada de geração, e foi fundamental para promover a diversificação de fontes da matriz.  

Hoje existe uma diversidade de agentes de capital privado e estrangeiro no segmento de geração e nos demais segmentos do setor elétrico nacional. O mercado livre cresceu, representando hoje mais de um terço (36%) do consumo nacional.  A matriz elétrica se tornou mais diversificada, reduzindo a representatividade das hidrelétricas, devido à inserção de tecnologias como eólica, solar, biomassa e gás natural.  A matriz saltou de 90 GW de capacidade instalada (2004) para 181 GW (2022), com as hidrelétricas respondendo por 60%. 

A evolução tecnológica contribuiu para uma queda no preço da geração e a expectativa é de preços ainda menores no futuro. Isso fez com que os projetos a serem implementados tenham preços menores do que os existentes, invertendo a lógica do passado.   

O crescimento da infraestrutura de linhas de transmissão e subestações permite o aproveitamento otimizado das fontes de geração, garantindo o atendimento da demanda com segurança e menor custo.  São 180 mil km de linhas (2022) e a previsão é chegar a 270 mil km em 2027. 

Por estes motivos é que o tema vem sendo amplamente debatido, pois ao migrar para um novo modelo de contratação de energia, a separação de lastro e energia não pode influir na percepção de risco dos agentes ao ponto de desestimular os investimentos em expansão da infraestrutura elétrica.  

Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), “a integração do sistema elétrico permite o aproveitamento integrado dos atributos das fontes, proporcionando segurança ao suprimento. Porém, é a separação de lastro e energia que tem potencial de resolver distorções econômicas através da valoração adequada dos atributos das fontes para operação otimizada do sistema e alocação equilibrada de custos e riscos do setor elétrico”. 

Como a contratação da geração impacta o consumidor? 

Como vimos, o modelo de contratação conjunta de lastro e energia se mostrou assertivo no que diz respeito à atração de investimento e expansão do sistema, bem como para a diversificação das fontes. Em contrapartida, foi necessário prover contratos de longuíssimos prazos indexados à inflação, muitas vezes alocando riscos às distribuidoras que originalmente seriam dos geradores.  

Com a abertura do mercado, mais consumidores vão migrar do ambiente cativo para o livre. Isso pode levar à sobrecontratação das distribuidoras, que compraram energia em nome do consumidor cativo que, em um futuro nem tão distante assim, pode não estar mais na sua base de clientes. Sem o tratamento adequado para essa questão, o efeito seria a elevação da tarifa dos consumidores cativos que optarem por não migrar ou que não possam migrar. 

Embora recentemente os investimentos em geração passaram a ser viabilizados também pelo mercado livre (o aumento da competitividade das fontes renováveis, em especial a eólica e a solar, fez com que o consumidor livre passasse a contribuir com a expansão da geração),  foram os consumidores do mercado cativo que pagaram por grande parte da atual infraestrutura elétrica, sustentando o custo de confiabilidade (lastro) do sistema, visto que a maioria das fontes controláveis (hídricas e térmicas) são mais caras que as renováveis variáveis.   

A separação de lastro e energia vai permitir que consumidores livres e cativos passem a contribuir de forma equânime com a confiabilidade, através do pagamento de um encargo cobrado na conta de todos os consumidores brasileiros. 

Por que mudar o modelo de contratação de energia? 

De acordo com a EPE, existem quatro motivos que justificam a alteração do modelo de contratação de energia:  

  1. a mudança da característica da matriz;  
  1. empoderamento do consumidor, que passa a ter poder escolha;  
  1. os subsídios cruzados resultantes da contratação da confiabilidade pelo ACR em favor do ACL;  
  1. as diversas ineficiências regulatórias. 
  • Mudança da matriz de geração 

 A característica dominadora da matriz de geração está mudando: de um parque gerador majoritariamente hidrelétrico para um com maior participação de fonte termelétrica, eólica e solar. Isso leva a restrições de operação, como dificuldade ao atendimento de potência e do horário de ponta de consumo. Fora a necessidade de se adaptar para integrar novas tecnologias e modelos de suprimento, como por exemplo, a geração distribuída.  

  •  Poder de escolha 

O consumidor de energia quer participar de forma mais ativa, escolhendo de quem quer comprar e de que fonte. Para isso acontecer, são necessários sinais corretos de preço e custos de suprimento.  

  • Alocação de riscos  

A maioria dos projetos de geração que proveem confiabilidade ao sistema, especialmente os térmicos, só conseguiria acessar financiamento através de contratos de longo prazo do mercado cativo.   

Os projetos de energia eólica e solar conseguem ser financeiramente viáveis através de contratos mais curtos no mercado livre, porém essas fontes não são suficientes para garantir a confiabilidade do sistema no longo prazo.  

 Isso faz com que o Ministério de Minas e Energia precise compensar a expansão da geração orientando a contratação de tecnologias específicas, como as térmicas, repassando os custos para os consumidores regulados. Essa decisão aumenta a pressão sobre as tarifas e induz maior migração para o mercado livre, criando um ciclo vicioso.  

  •  Ineficiências regulatórias  

O fato do lastro e da energia serem unidos cria uma contaminação cruzada de preços. Afinal, quanto vale a energia? Quanto vale o custo de confiabilidade? Isso dificulta a introdução de capacidade na matriz, podendo levar a um cenário de sobrecontratação e, consequentemente, sobrecusto.  

Qual a urgência para revisão do mecanismo de contratação de geração? 

A reforma é importante porque a expansão da geração por leilões está diminuindo. A demanda está em queda, fruto não apenas da conjuntura econômica, mas também do relevante avanço da geração distribuída e da expansão do mercado livre, e está atingindo níveis recordes, deixando as distribuidoras sobrecontratadas. Este cenário deve durar até 2026, segundo estudos do Plano Decenal de Expansão 2030. O resultado é uma demanda por geração centralizada reduzida, por isso, torna-se ainda mais difícil depender desse segmento para garantir a confiabilidade do sistema.  

Nesse contexto, o modelo de contratação considerando a separação de lastro e energia ganha força como o caminho para se manter o objetivo de modernização do setor, trazendo para o consumidor o direito de escolha de seu fornecedor, ao mesmo tempo que se mostra um mecanismo capaz de garantir a segurança do suprimento. A ideia é contratar nova capacidade de usinas em leilões de lastro, com custo de aquisição dividido entre os mercados livres e regulado. A energia continuaria sendo contratada da mesma forma: via leilões regulados para a distribuidora ou em contratos bilaterais para os consumidores livres. Com isso, o governo garantiria o controle sobre a política energética, utilizando os leilões regulados como ferramenta para definição da matriz elétrica.  

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